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A experiência de Berenice Piana como mãe de Dayan acabou estimulando-a a defender os direitos dos autistas no Brasil

Foto: Lucas Benevides

“Existe uma frase do escritor Augusto Cury que gosto muito: ‘é fácil amar um filho que está no pódio, mas a excelência do amor é amar o filho que está nas últimas fileiras’. Um pedido que eu faço é que as mães nunca desistam. A excelência do amor nós conhecemos de perto”, afirma Berenice Piana, mãe de Dayan, 22, que possui o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Dayan tinha cerca de 2 anos quando Berenice começou a perceber que havia algo diferente em seu comportamento. Já mãe de dois filhos, lembrou que, aos 18, tinha lido um livro que falava sobre autismo e começou a pesquisar sobre o assunto. Mas o diagnóstico exato demorou. Apenas aos seis anos – quatro anos depois – conseguiu ter a certeza através de um especialista: seu terceiro filho era autista. Berenice buscou um tratamento adequado, mas percebeu o quanto era difícil e caro. Com esforço, conseguiu que seu filho melhorasse bastante, mas, para ela, não era suficiente. Decidiu, então, que deveria ajudar outras famílias. 

“Comecei a estudar, observar na TV Senado e traçar os perfis dos senadores, para ver quem eu iria procurar. Acertei de cara. Mandei um e-mail para o senador Paulo Paim e, no dia seguinte, ele pediu meu número de telefone, me ligou e propôs a primeira audiência pública. Quando falei do projeto de lei, ele falou para levantar essa ideia nessa audiência, em Brasília, em 2009. No ano seguinte, levei o projeto, que foi escrito na minha casa, e deu certo”, explica Berenice, que dá nome à Lei 12.764, que instituiu, em 2012, a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.

Junto à Berenice, vários pais e mães de autistas se mobilizaram e fizeram com que a lei fosse criada, que inclui, entre outros pontos, a responsabilidade do poder público quanto à informação pública relativa ao transtorno e suas implicações; o incentivo à formação e à capacitação de profissionais especializados no atendimento à pessoa com transtorno do espectro autista, bem como a pais e responsáveis, e o estímulo à pesquisa científica, com prioridade para estudos sobre transtorno no País. “Sei o dia, hora e o minuto que ela foi sancionada: dia 27 de dezembro, às 23h45”, relembra Berenice.

Um desses pais que estiveram presentes ao lado de Berenice para a criação da lei foi Ulisses da Costa, pai de Rafael, 21, que possui o transtorno. Em 2005, Ulisses foi à Defensoria Pública fazer uma denúncia: o Estado do Rio de Janeiro não possuía tratamento para as pessoas com autismo. A denúncia virou uma ação civil pública obrigando o Estado a oferecer tratamento multidisciplinar às pessoas com autismo e acompanhamento educativo e psicológico. Em 2006 foi à Câmara dos Vereadores do Rio propor uma lei para reconhecer a pessoa com autismo como deficiente e criar centros específicos de tratamento. Esse projeto virou a Lei Municipal 4.907 do Rio de Janeiro.

Flávio Soares é hoje dono de uma marca de alfajor, criada por ele com a ajuda de Alair e Cláudia, que também são pais de Gabriel

Foto: Lucas BenevidesPara documentar todo o processo e explicar

Para documentar todo o processo e explicar um pouco mais sobre como tratou o filho, em abril de 2013, comemorando a promulgação da lei, Ulisses lançou a obra “Autismo no Brasil, um grande desafio”. “O nome do livro quem deu foi o próprio Rafael. Em uma entrevista em 2009, o repórter perguntou para ele o que era ter autismo. Rafael respondeu que era mais do que ter uma deficiência. Para ele, ter autismo é um grande desafio: para os autistas, para os políticos, para os profissionais, para todos nós”, afirma.

Cláudia Morais, coordenadora desde 2013 do Movimento Orgulho Autista (Moab) do Rio de Janeiro, também esteve presente na mobilização para a criação da lei. Ela tem um filho de 28 anos com o transtorno e, embora tenha perguntado para uma profissional se ele era autista quando tinha um ano e oito meses, o diagnóstico correto só veio aos 12. “O Moab, com sede nacional em Brasília, é um movimento fundando por pais, profissionais e amigos dos autistas a fim de introduzir no Brasil mais políticas públicas e melhor qualidade de vida para eles. Além disso, temos coordenadorias espalhadas pelos estados e pelos municípios, além de parcerias com entidades e associações que fazem atendimento aos autistas”, explica.

Em 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou que acredita-se que a doença atinja cerca de 70 milhões de pessoas no mundo. Segundo dados divulgados em 2009 pelo Center of Deseases Control and Prevention (CDC), o autismo afeta, em média, uma em cada 110 crianças nascidas nos Estados Unidos. No Brasil, apesar de não terem dados concretos, estima-se que entre 200 milhões de brasileiros, dois milhões são autistas. O diagnóstico é complicado pelo fato de cada criança apresentar um comportamento diferente. Além disso, não é ensinado aos futuros médicos, na universidade, como detectar o transtorno. 

Com a ajuda do pai, José Santana, Breno Bastos frequenta a faculdade de Jornalismo e está no terceiro período

Foto: Douglas Macedo

Em um ambiente na casa dos pais Alair e Cláudia Soares, Flávio, 17, se orgulha da sua fábrica de alfajores. O doce é todo produzido por ele, com a ajuda dos pais. A ideia do “Doces do Bem” surgiu quando o menino, aos 13, experimentou pela primeira vez o doce. Ao mesmo tempo em que se apaixonou, teve contato com uma fábrica de chocolate caseiro, se interessando pela montagem das caixinhas e embalagens. Voltando das férias, começou a pensar no assunto e conversou com a mãe sobre a possibilidade de fazer e vender alfajor. Aos 14, foi com os pais vender o doce na praia. Não sobrou um. A partir daí, os pais perceberam que valia a pena investir. Hoje, além da venda na praia, o jovem já possui encomendas. “Meu sonho é que, um dia, o Flávio tenha uma fábrica grande só com funcionários autistas trabalhando”, confessa Cláudia.

Mãe de Douglas, hoje com 14 anos, Michele Antonio percebeu alguns comportamentos diferentes quando o filho tinha um ano e quatro meses. Ele organizava tudo: caixas de leite, produtos no mercado, objetos dentro do armário da cozinha. Além disso, só comia alimentos redondos. “Hoje, com tratamento adequado, ele melhorou muito. O único comportamento que Douglas ainda mantém é a compulsão por CD, DVD e bola”, conta Michele, que acredita que as pessoas falam muito sobre o lado negro, da dor de quem tem autismo, ignorando um outro lado, único e alegre, que, se a família e a sociedade permitirem, aparece. “Escrevo todos os dias sobre a alegria de ter um filho autista. Porque o Douglas é alegre 24 horas, é feliz e não é o autismo que vai fazer a diferença nele. As pessoas olham pra mim e perguntam quando veio o meu luto. Ele apareceu, mas não ficou muito tempo”, garante.

Entre diversas atividades que faz no dia a dia, Douglas faz terapia na Clínica-Escola do Autista, em São Gonçalo, a segunda do Brasil. A primeira fica em Itaboraí e foi idealizada por Berenice Piana, com o objetivo de ter uma instituição-modelo para que a lei fosse cumprida. No local são atendidos crianças, jovens e adultos autistas. “Tinha que haver um lugar que congregasse tudo. Aqui nós temos todo o lado clínico, desde o neuropediatra, que também é nutrólogo, passando por nutricionistas, psicólogas, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fonoaudióloga e assistente social. Sem falar na escola com o ensino individualizado, até que ele esteja pronto para o ensino regular”, explica Berenice. 

Segundo a Secretaria de Educação, Ciência e Tecnologia de Niterói, a rede municipal trabalha com a proposta de educação inclusiva com profissionais capacitados, além de professores de apoio que acompanham os alunos deficientes. Portanto, não consta nos planos atuais implantar uma clínica-escola do autista.

Amigas em comum de Berenice Piana, as mães Mila Ferreira e Bárbara Parente decidiram criar o Grupo Família Azul. A cor é considerada símbolo do autismo porque o transtorno ocorre mais no sexo masculino (estima-se, segundo Berenice, que em cada cinco pessoas com autismo, quatro sejam homens). Professora, pedagoga e mãe de Davi, 17, Mila hoje é a coordenadora de educação inclusiva da Secretaria Municipal de São Gonçalo. Ela acredita que é necessária uma ação de todos e em conjunto para que haja uma maior inclusão social. “É fundamental promover campanhas nas áreas da educação, saúde, desenvolvimento social e sociedade civil. Divulgar a Lei 12.764 e cobrar a sua aplicação. Com todo o respeito ao trabalho desenvolvido pelo CAPS e CAPSI  (unidades especializadas em saúde mental para tratamento e reinserção social de pessoas com transtorno mental grave e persistente), hoje, essas instituições estão com uma sobrecarga grande no tratamento da dependência química, além dos pacientes com quadros de esquizofrenia e psicopatias. Entendemos que este não é o lugar para o autista, por isso lutamos pela clínica-escola”, acredita.

Criado em 2015, a partir do Movimento Outubro Rosa Niterói, o Movimento do Otimismo tem, dentre sua cartela de projetos, o de desenvolver inclusão social aos autistas. “Criamos um ambiente dentro da academia Tio Sam, em Camboinhas, onde líderes dos setores têm a oportunidade de conhecer a realidade e rotina das crianças com autismo e participar com suas famílias para um melhor atendimento de suas necessidades”, afirma a criadora Camila Cavalcanti.
viverra.

Coordenadora de educação inclusiva da Secretaria Municipal de SG, Mila Ferreira é mãe de Davi

Foto: Arquivo Pessoal

Um desses projetos é a aula de natação individual para autistas. Rogger Conhasca explica que todas as aulas duram 45 minutos e a quantidade de dias na semana fica a critério dos pais. “A única coisa que trabalho de uma forma diferenciada é a ambientação. Crianças com TEA têm certa dificuldade em encarar o novo e o que não faz parte da sua rotina. Então, quando recebo algum aluno, posso ficar dias, semanas ou até meses trabalhando essa adaptação. O progresso inicial quanto à adaptação ao meio líquido é bem rápido, pois a água, por si só, já ajuda criando um ambiente relaxante e lúdico”, analisa o professor de natação.

Segundo o neuropsiquiatra Aledson Costa, a nova revisão do DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em português) classifica o TEA em três níveis: grau leve (nível 1), moderado (nível 2) e severo (nível 3). O profissional, no entanto, não compactua com essas descrições e prefere olhar para a individualidade de cada um, seus sofrimentos, ou a “dor de existir”, como ele gosta de pensar. “Autismo é uma denominação dada pela sociedade para um jeito de ser das pessoas considerado inferior, baseado nos parâmetros do que esta própria sociedade descreve como sendo normal”, afirma Aledson, acrescentando que os autistas têm comportamentos variados. Em comum, cita como principal característica a “introspecção”.

Portador de TEA, Breno Bastos Santana, 19, entrou na faculdade de Jornalismo em 2016. Cursando atualmente o terceiro período, escolheu a profissão devido à paixão desde criança por futebol, como explicam Vanja Bastos e José Santana, pais do universitário. Até o ano passado, José apenas levava o filho para a universidade e o esperava na biblioteca. Este ano, com matérias específicas de Jornalismo, Breno assiste algumas aulas à noite. Para que ele se sinta mais seguro, o pai o acompanha. “Ele sempre assistiu telejornais e programas de esportes, por isso entendeu que tinha que ser jornalista”, acredita.

Professora da universidade, Helen Britto afirma que Breno é extremamente participativo. A maior importância dele estar presente, segundo ela, é a possibilidade dos alunos desenvolverem a empatia. “Percebo que a turma acolhe bem, desde o primeiro dia. A minha preocupação é focar no sujeito e não no diagnóstico, esse é o grande desafio. É uma troca. A gente aprende com ele e ele aprende com a gente”, analisa. 

Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o autismo, hoje, às 10h, na área externa do Museu de Arte Contemporânea (MAC), será apresentada, pela primeira vez em Niterói, “Anjo azul a cerca de tudo”, performance teatral que abordará o assunto. Com direção de Mário Sousa e texto dos “pais azuis”, Joel Vieira e Mônica Ferreira, a peça conta um pouco da vida do autista. Mônica Ferreira, também atriz, dá vida a uma personagem, mãe de uma autista, que, por várias vezes, passa por situações de desafios e impedimentos.